Impossível não lembrar do epílogo da biografia "O Cavaleiro da Saúde", ao acompanhar as polêmicas em torno da vinda de médicos estrangeiros, em especial cubanos, para atuarem em áreas carentes, onde brasileiros não se dispõem a ir.
Um dos temas prediletos de Dr. Juljan - como fixar profissionais de saúde em áreas tão difíceis - foi escolhido por ele para palestrar no Congresso da Federacion Peruana de Administradores en Salud (Fepas), realizado em Lima/Peru, nos idos de maio/2009. Não sabíamos que seria sua última viagem internacional do Cavaleiro da Saúde, e quase derradeira apresentação em público (em junho daquele ano ainda coordenou o Congresso Latino-Americano de Serviços de Saúde, na Hospitalar Feira+Fórum, em São Paulo)!
Intitulada "Fixação de Recursos Humanos Qualificados em Regiões Não Desenvolvidas", a apresentação faz pensar para além dos problemas hoje apontados nas notícias sobre o atual programa governamental "Mais Médicos". Confira (os grifos são meus):
"Um dos problemas de difícil solução, especialmente na área de saúde é a fixação de profissionais em áreas subdesenvolvidas e muitas vezes até em áreas periféricas de grandes centros urbanos.
Abordarei neste trabalho as primeiras, pois as causas dos dois problemas são diferentes e as possíveis soluções também diferem.
As tentativas para solução do problema tentadas pelas autoridades fracassaram no Brasil.
Eram baseadas em remuneração convidativa, ou tentando obrigar recém-formados a estagiarem em regiões distantes, pouco desenvolvidas. Não se levou em consideração uma série de fatores socioeconômicos e culturais que são essenciais. Com isso, ambas medidas fracassaram.
Como exemplo, quero citar um trabalho realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (elaboração de um projeto de assistência a saúde e coordenado por mim) na Ilha do Marajó na Amazônia - a maior ilha fluvial do mundo. Durante grande parte do ano, a maioria das áreas da ilha estão alagadas e só existem meios de condução por via fluvial. As casas estão construídas sobre palafitas. Nestes povoados praticamente não há pessoas com educação de nível superior. As comunicações são deficientes, internet não funciona, não existe infraestrutura de saúde pública. O governo do Estado do Pará ofereceu salários e condições convidativas aos médicos. Alguns se candidataram, mas quem mais tempo ficou nos postos, ficou por três meses.
A única solução possível encontrada nestas áreas é dar um bom treinamento a pessoas não profissionais para dar primeiros socorros, realizar vacinações, promover hidratação oral e principalmente avaliar a gravidade da situação para poder promover a remoção do doente por helicóptero ou barco rápido (lanchas voadoras) até um centro com recursos, no caso a cidade principal da ilha. Esse pessoal também deve ser treinado para dar assistência às grávidas e ao parto. É essencial que haja um treinamento eficiente e uma supervisão por médicos e enfermeiros não residentes, mas também um programa de visitas constantes para fazer uma supervisão e treinamento permanente.
Outro fator limitante para fixar profissionais são as condições ambientais. Posso citar um exemplo, Tabatinga, na Amazônia. A água nem sequer é clorada. O lixo, conforme relatado pelo Dr. André Medici, economista em saúde do Banco Mundial, mesmo do hospital existente, é queimado no quintal. Não há coleta de esgoto. O médico mesmo com boa remuneração não se fixa na cidade. Por falta de profissional habilitado, o cirurgião dentista realiza cirurgia geral de menor porte. No hospital do exército, o melhor da região.
O Secretário de Educação Profissional Tecnológica do Ministério da Educação me referiu que o ministério implantou uma escola técnica em Tabatinga, porém, não consegue contratar o pessoal docente para realizar o ensino. Isso são apenas alguns exemplos da situação geral. Mas existem exemplos que provam que é possível reverter a situação.
No Brasil, na época dos anos 1960, existiu uma experiência positiva para enfrentar o problema, da Fundação SESP (Serviço Especial de Saúde Pública). Este serviço tinha uma política especial com bons resultados.
* Escolhia as regiões problemáticas e lá estabelecia postos de serviços com serviços ambulatoriais, educação sanitária e alguns leitos para casos de urgências.
* Não se enviavam para lá simplesmente médicos, enviava-se equipe de saúde. Esta equipe consistia no mínimo por um médico generalista, um médico de saúde pública, enfermeira, educadora sanitária, técnico de laboratório, para realizarem exames básicos e eventualmente outros necessários em vista das condições locais.
* Esta equipe formava para auxiliá-la agentes de saúde.
* Cada equipe era ligada a uma instituição de ensino que lhe dava suporte. E dispunha de meio de transporte para ao caso de necessidade remover um paciente. As equipes levavam em geral um projeto de pesquisa com a garantia de que, se bem realizado, seria publicado.
* Além do mais, havia um plano de cargo e funções que garantia aos participantes das equipes que se destacassem cargos em estabelecimentos de ensino ou bolsa de estudo para aperfeiçoamento no país ou em universidades estrangeiras.
* A área de atenção de cada equipe tinha um território delimitado, o que possibilitava a avaliação das melhorias sanitárias conseguidas por suas atividades.
Essa experiência mostra que para fixar profissionais, condições outras, além da remuneração, são essenciais - existência de uma equipe, condições de moradia, condições adequadas de trabalho, metas profissionais estabelecidas e contato com centro mais avançados para consultas e orientação.
Também é essencial que a equipe tenha a garantia de atendimento de casos complexos em centros adequados.
Infelizmente por motivos políticos partidários as atividades da Fundação SESP, que tinha um suporte internacional foram desativadas.
Dei o exemplo da SESP apenas como exemplo, existem outros no Brasil, sempre isolados, como de hospitais que conseguem fixar profissionais em regiões isoladas. Nas condições básicas, seguem os princípios adotados pela SESP.
Portanto existem soluções, mas dependem de gestão competente e adequada.
Não conheço as condições nas demais regiões da America Latina, mas suspeito que sejam semelhantes as do Brasil. Entre nós o problema é preocupante, e não vejo medidas das autoridades para resolvê-lo, espero que este Congresso [da Fepas, 2009] consiga ser um ponto de partida para um estudo sério do problema".No final do capítulo, encerro a biografia do Cavaleiro da Saúde com uma incrível história contada por Dra. Luz Loo (nas fotos que ilustram este post) numa homenagem póstuma a ele em 2010. Mas isso fica para quem lê o livro. (Silvia Czapski)
Silvia, muito obrigado por mais este presente, numa data tão significativa como a de hoje. Vou reler o livro que, a cada releitura se revela mais e mais atual.
ResponderExcluirCom Carinho
Adrianos Loverdos
Excelente texto, sou médico, e por mais de 1 vez tentei morar no interior (porque gosto) e acabei desistindo por total falta de condições ao trabalho. Quando se fala de fixar médicos no interior só se fala de remuneração. Não somos mercenários, apesar de que todos nós precisamos de meios de subsistência. Todos nos quando trabalhamos gostamos de ver o resultado do que plantamos. O que falta é esta estrutura para abraçar e incentivar todos os nossos profissionais da saúde, não só médicos, para que o trabalho possa dar bons resultados e se transforme em crescimento profissional e pessoal do trabalhador.
ResponderExcluirOlá, sou um profissional de saúde de uma área onde poucos lembram e ela muito auxilia. Não direi que sou contra o "mais médicos" porém também não sou a favor, já que observo que o problema da saúde no Brasil está na logística, observei que os médicos as vezes não fica em uma região rural ou periférica por conta da falta de infra-estrutura mínima necessária para seu Trabalho, isso engloba a equipe multidisciplinar dos outros professionais de saúde, exemplo; existe lugares no Brasil onde querem pagar de 20 a 30 mil para um médico, porém quando este mesmo chega lá ele não encontra o mínimo no ambiente hospitalar que irá complementar seu trabalho, não tem uma sala de raios-x, não tem um laboratório para exames simples, não tem remédios e outros recursos, quando têm, simplesmente pagam 800 reais aos outros profissionais de saúde, como por exemplo um técnico de enfermagem ou técnico em radiologia, que por sua vez não tem a qualificação necessária ou quando tem, este profissional trabalha em mais de um ou dois empregos para complementar sua renda, que logo afeta o máximo de desempenho que estes profissionais teriam se trabalhassem em um único lugar que oferecessem bons salários e condições favoráveis de trabalho. Se olhassem para a saúde como um todo, com o tempo onde precisam de 4 médicos para atender, teríamos apenas um dando conta por consegui manter a logística funcionando, tem muita coisa que gostaria de abordar, mas fica para um próxima e demais interessados. Obrigado pela matéria.
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