sexta-feira, 15 de maio de 2015

Ah doutor, mosquito desse tamanho...
por aqui não tem!!!

(imagem de dvulgação)
Eles são primos, parecidíssimos. Alados e pequeninos, têm as mesmas qualidades de viverem em áreas tropicais, de se reproduzirem em meio aquático, não voarem tão longe assim e transmitirem doença ao “bicho homem”... Só que um prefere as matas, enquanto outro é urbano, mesmo que já tenha sido visto em zona rural.

Estamos falando do mosquito Anofelino - que transmite malária e é mais comum na Amazônia - e do agora famosíssimo Aedes, pelo terror que vem causando como transmissor da dengue, da chietkungunya, zika e também febre amarela. Doenças que podem matar, apesar do baixo índice de mortalidade.

Seja Anofeles ou Aedes, tudo começa com a presença de 1- alguém infectado e 2- do mosquito. Este receberá o vetor da doença ao morder a pessoa contaminada... e o levará para gente sã. Inicia-se um ciclo que pode se tornar epidemia.

Se não houvesse o mosquito...

OK, óbvio para qualquer profissional de saúde, e quaisquer formuladores que planejam  combater das doenças transmissíveis. A polêmica se instala na sistemática a adotar, que tem a prevenção como fator principal.

Doutor Juljan sempre lembrava (com saudade) dos antigos “exércitos de mata-mosquitos” espalhados pelo país, com a missão da conscientização ininterrupta da população, que assim chamava as equipes de campo da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública  (Sucam).

Foram extintas no governo Collor, junto com a própria Sucam. Sem o combate permanente dos focos de mosquitos, o país passou a conviver com o crescente retorno da dengue a cada verão... até chegar à atmas nunca com atual crise de 2015.


O Cavaleiro da Saúde
traz o episódio da participação de Dr. Juljan no 22º Encontro de Medicina na Fronteira Brasil–Peru–Bolívia, em 1993, e seu entusiasmo com palestra do antropólogo e médico Ari Teixeira Ott, então professor assistente (hoje Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa) da Universidade Federal de Rondônia (Unir). Tal encanto com a descrição das dificuldades relacionadas à conscientização da população, que levou a publicar a apresentação no jornal Urtiga, da Associação Ituana de Proteção Ambiental (Aipa), que eu editava.

Fala-se do Anofeles, vetor da malária, num contexto de ocupação da Rondônia. Números dão ideia da
situação de então: em 1994 foram 133,8 mil casos de malária só naquele Estado (551,1 mil nos nove estados amazônicos), com 42 dos 414 óbitos na região, segundo dados oficiais.

Passaram-se 22 anos. Dr. Juljan certamente tiraria cópias do texto hoje, para mostrar a formuladores de opinião. Pois, mesmo que longo, ele permanece interessante como referência para pensar o atual drama do Aedes e da dengue, e a busca de soluções. Confira:
 


ASPECTOS ÉTNICOS NA SAÚDE DE RONDÔNIA
Ari Miguel Teixeira Ott

I. INTRODUÇÃO


O sistema de cuidados médicos nas sociedades capitalistas ocidentais é dominado pelo paradigma biológico. A produção e reprodução do conhecimento médico, bem como a formação de pessoal, ocorre e é validado pelo ponto de vista das ciências biológicas. A expansão das descobertas de novas tecnologias, a partir do aumento de produção da energia desencadeada com a revolução industrial em meados do século passado [obs.: século 19], criou no ocidente a confortável ilusão de que todos os problemas humanos podiam ser resolvidos pelo aumento do patrimônio tecnológico...


A ciência surgiu como a nova deusa a quem se deve pagar todos os tributos. As grandes descobertas e conquistas até os anos setenta solidificam a crença do crescimento constante de um mundo cientificado, de onde a fome e a apatia estariam banidas, e de uma sociedade medicalizada, de onde a doença e a morte, estes entes ameaçadores, estariam expurgadas.


A partir dos anos setenta os constantes fracassos tecnológicos em resolver os problemas estruturais da sociedade, a crise político-ideológica, o aparecimento inexplicável de novas doenças e o recrudescimento de antigas epidemias, o aumento da fome a níveis planetários, as guerras étnicas fraticidas e a perpetuação das desigualdades sociais entre nações e dentro de nações levaram a sociedade ocidental a voltar-se para antigas e esquecidas formas de conhecimento.


Ressurge, assim, a crença em práticas alternativas de autoconhecimento, a valorização do aspecto e do ritual do ser humano, as terapias alternativas e contemplativas e a compreensão mística do mundo.


À falência das tecnologias como panaceia para todos os males, seguiu-se a compreensão de que o preço a pagar pelo progresso é destruição das condições de vida no planeta. O movimento pela preservação do meio ambiente, nascido nos anos oitenta como bandeira de luta de grupos isolados e exóticos, amplia-se e consolida-se pouco a pouco, superando as discussões e preocupações de caráter ideológico que dominaram as décadas precedentes.


É com este cenário como pano de fundo que se pode pensar os aspectos étnicos de Rondônia.


II. DEFININDO GRUPO ÉTNICO


Uma definição de grupo étnico deve incluir dois aspectos importantes:
* é um grupo cujos membros possuem uma identidade distintiva atribuída, e
* sua distintividade como grupo tem quase sempre por base uma cultura, origem e história comuns.


É importante alertar, entretanto, que a conceituação de grupo étnico é um assunto que está longe de ter sido esgotado. Os autores divergem muito uns dos outros, dependendo da teoria utilizada ou do caso específico que está sendo abordado.


Se utilizarmos a definição acima, pode-se levantar uma questão fascinante e que parece em aberto: existem grupos étnicos em Rondônia? E, em caso positivo, como esta etnicidade influenciaria as crenças e práticas médicas e, por consequência, a morbimortalidade do grupo?


Rondônia, como todos sabem é um Estado com características diferenciadas em relação a outros estados brasileiros. A sua população é predominantemente constituída por migrantes de todas as partes do Brasil. Além disso, o grosso da migração é relativamente recente, datando da década de setenta e, mais ainda, da década de oitenta.


* Nos municípios da BR 364, portanto, não se encontrarão agrupamentos humanos que possam reivindicar para si mesmos uma base cultural e histórica comum. Descartaríamos a designação de grupos étnicos para os agrupamentos paranaenses, capixabas, catarinenses, mineiros e muitos outros que se estabeleceram no município de Cacoal, Vilhena, Ji-Parana, Rolim de Moura ou outros.


* Nos municípios de Porto Velho e Guarajá-Mirim, ambos de colonização mais antiga, pode-se pensar em uma situação diferenciada. Nestes dois locais é possível vislumbrar pelo menos a tentativa dos migrantes originais e seus descendentes constituírem-se em grupos étnicos. Nestes casos é possível distinguir nos autodenominados "filhos da terra" uma identidade distintiva atribuída. O fato de que os "não filhos da terra" referem-se aos primeiros como sendo "minhocas", reforça a nossa convicção, dado que nas relações entre grupos étnicos é necessário que o outro identifique o nós, de modo geral, como ocorre nesse caso, por uma perspectiva depreciativa. A confirmação ou negação desta hipótese exigiria obviamente estudos mais aprofundados.


O que não se pode descartar, embora os estudos existentes acerca do tema sejam insuficientes, é marca da influência que os traços ou elementos culturais dos diferentes grupos exercem sobre o perfil de morbimortalidade da população.


III. ETNIA E DOENÇA: O CASO DA MALÁRIA


Muito mais do que aspectos operacionais e/ou administrativos, cujos problemas foram potencializados a partir da extinção da SUCAM e da FSESP, reunidos e um único órgão no governo Collor , e que estariam dificultando o controle da malária no Estado de Rondônia, devem ser considerados os fatores de ordem ecológica, econômica e sócio-cultural. [obs.: em 1991 – dois anos do presente artigo – Collor assinou o Decreto Federal nº 100, criando a Funasa - Fundação Nacional da Saúde, que “incorporou” as antigas Sucam - Superintendência de Campanhas de Saúde Pública - e Fsesp - Fundação Serviços de Saúde Pública]


Se o ecossistema amazônico, por si só, já propicia condições ideais para o desenvolvimento dos vetores da malária, a presença do homem tem como efeito a otimização destas condições.


O estabelecimento do migrante na área rural ocorria através da abertura de uma pequena clareira na mata, com a construção de um pequeno abrigo de palha ou plástico, sem paredes e apenas com o telhado.


À medida que a família estivesse mais capitalizada, o tapiri inicial era substituído por uma construção de madeira o "pau a pique". Este tipo de habitação permitia o livre trânsito dos anofelinos, com consequente infecção intradomiciliar.


A proximidade da casa com a mata e a presença humana afugentava os mamíferos silvestres da área, subtraindo ao vetor sua fonte de alimentação, que se via obrigado a fazer seu repasto sanguíneo no próprio homem.

Adicione-se, ainda, a este quadro, o represamento parcial de igarapés, provocado pela derrubada de árvores de grande porte com sombreamento da coleção aquática e oferta de matéria orgânica, condições extremamente favoráveis à proliferação larvar.


Outras práticas, muito mais prosaicas, devem ser consideradas. Algumas delas, inócuas do ponto de vista da saúde pública quando realizadas no local de origem do migrante, podem assumir um caráter inteiramente diferenciado no contexto amazônico.


O consumo de chimarrão, por exemplo:

* com a família reunida na varanda da casa no fim do dia, tem uma função sociocultural relevante, pois fortalece os laços familiares, propicia a discussão dos temas domésticos e permite avaliar e planejar as atividades grupais.

* Esta mesma prática, cumprindo as mesmas funções, quando se realiza em Rondônia pode se constituir em um momento privilegiado para a infecção da malária, se os anofelinos também estiverem presentes à reunião.


Não se veja nestes exemplos nenhuma tentativa de considerar o migrante como vítima ou vilão, mas apenas a tentativa de demonstrar que o homem ao migrar não leva consigo apenas os bens materiais que pode carregar. Ele leva fundamentalmente suas crenças, valores e práticas.


Ainda que migre para uma região com um contexto ecológico completamente distinto do seu local de origem, ao menos no começo, ele mantém, ou tenta manter, o conjunto de crenças, valores e práticas que recebeu durante o processo de aculturação e/ou socialização.


E nem poderia ser de outra forma, porque é a cultura que determina, em última instância, o seu "weltanschauung", ou visão de mundo.


IV. O PARADIGMA BIOLÓGICO E A CULTURA


Do conjunto de crenças e práticas mantidas pelo grupo devem ser destacadas aquelas relativas aos cuidados de saúde.


As crenças e práticas médicas das pessoas visam identificar, remover, interromper, aliviar ou prevenir os episódios de mal-estar, crise ou distúrbio. Isto significa que boa parte dos esforços das pessoas de qualquer sociedade estão centrados na profilaxia, diagnóstico e terapia das moléstias que as afetam.


É claro que as crenças e práticas irão variar de sociedade para sociedade e dentro da mesma sociedade entre diferentes grupos. Estas diferenças são determinadas por diferentes processos de socialização primária.


Mais óbvio ainda, mas infelizmente nem sempre percebido, é que as crenças e práticas médicas sustentadas pelas pessoas, não necessariamente estão baseadas no paradigma biológico da medicina ocidental.


Ao contrário, ainda que possam adotar conceitos e práticas assimiladas da medicina ocidental, eles serão reinterpretados em um contexto lógico próprio. Um antigo exemplo, hoje já incorporado como piada, ajuda a esclarecer este ponto.
Gran mosquito para colorear, em 2015. Tudo igual
(fonte: enricacallas - imagui.com)
Há alguns anos a SUCAM considerou que deveria ensinar para as pessoas o ciclo biológico transmissão da malária. Para tanto providenciou a impressão de cartazes com a figura do anofelino em posição de pouso, de forma que as pessoas pela visualização do cartaz aprendessem a identificar o vetor.

Para facilitar a visualização o anofelino foi ampliado centenas de vezes na reprodução. Passado algum tempo da divulgação do cartaz, a SUCAM viu-se obrigada a suspender a campanha porque seus idealizadores perceberam que as pessoas estavam interpretando os cartazes com uma lógica própria, embora impecável: se a malária era transmitida por um mosquito daquele tamanho, não deveria haver malária na região, visto que ninguém conhecia um mosquito daquele tamanho; por outro lado, em havendo malária na região, somente poderia ocorrer transmissão de outra maneira que não por mosquito.


* Em inquérito realizado por Hayes & Ferraroni ao longo de um trecho da BR 174, que liga Manaus a Boa Vista, foi demonstrado que apenas 45% das pessoas entrevistadas revelaram conhecer que a transmissão da malária se dá através da picada do mosquito.

* Estudo semelhante realizado por Ott & Cols. nos municípios de Ariquemes, Ouro Preto e Ji-Paraná indicou que apenas 22% das pessoas entrevistadas associavam a doença malária com a picada do anofelino.


Ambos os estudos, entretanto, indicaram que as pessoas não sabem determinar os sintomas da malária em percentagens muito baixas (9% e 7,5%, respectivamente). Em outras palavras, as pessoas estariam diagnosticando a malária corretamente, na esmagadora maioria, embora o conhecimento sobre os mecanismos de transmissão não estivesse de acordo com os preceitos biológicos.


É preciso ressaltar que este aparente desconhecimento não significa, nem revela ignorância e confusão, como querem alguns autores, revestidos de uma capa etnocêntrica que os impede de considerar como válidas explicações diferentes das suas.


O sistemático desconhecimento dos aspectos étnicos atualizados pelas populações, especialmente por parte dos planejadores de saúde, tem levado à perpetuação do que poderíamos chamar de falácia das cabeças ocas. Isto é, os planejadores consideram como universalmente válidos e inquestionavelmente corretos os procedimentos da medicina ocidental; desprezando, considerando como curiosidades folclóricas, ou como atestado do nosso subdesenvolvimento, as crenças e práticas médicas mantidas pelas pessoas.


V. CONCLUSÃO


Infelizmente, são raros os trabalhos que se dedicaram a estudar as crenças e práticas médicas de grupos étnicos relativas às doenças e seus tratamentos.


* Nos poucos trabalhos produzidos por médicos ou por pesquisadores com formação eminentemente biológica, fica mais ou menos claro que o objeto da pesquisa é determinar o conhecimento que a população tem a respeito dos fundamentos biológicos das doenças. Isto é, por não compreenderem mais profundamente o mecanismos da dinâmica sócio-cultural apegam-se ao paradigma biológico.


* Por outro lado, aos cientistas sociais que se debruçam sobre o tema, falta um conhecimento teórico-metodológico mais acurado em relação ao processo saúde/doença.


Um último aspecto merece nossa atenção, para concluir esta exposição. Trata-se de um questionamento inevitável nos tempos atuais. O fracasso de sucessivas políticas governamentais levou ao sucateamento do serviço público em todos os níveis e à falência do estado brasileiro.


* A penúria do setor de atendimentos médico saiu dos matutinos.


* O abandono da população à própria sorte é constatada em qualquer lugar e a qualquer momento.


* Os administradores de saúde, responsáveis pela gerência dos recursos públicos do setor, parecem estar mais interessados no rápido enriquecimento, do que no gerenciamento eficaz dos dinheiros.


Em nível de Rondônia, a Justiça Federal viu-se obrigada a nomear um interventor para vigiar a aplicação dos recursos na Secretaria de Saúde, em uma tentativa terminal de estancar a sangria dos recursos. Um relatório apresentado pelo Conselho Estadual de Saúde constatou que as auditorias realizadas pelo Inamps/MS
"demonstram cabal e irrefutavelmente a malversação de recursos do SUS pelos gestores relativos a: obras contratadas e não realizadas, no todo ou em parte; licitações fraudulentas e dirigidas; diárias e passagens pagas em duplicidade; notas fiscais e empenhos adulterados e/ou sem confiabilidade; aplicação dos ganhos de capital na conta do SUS; repasses ilegais e indevidos ao Iperon [Instituto de Previdência dos Servidores Públicos do Estado de Rondônia]; sumiço e/ou desaparecimento de mercadorias, medicamentos, equipamentos e veículos automotores, comprados com o dinheiro do contribuinte; favorecimento de alguns fornecedores ou prestadores de serviço; etc."

Quando a situação chega a tal ponto, toda a discussão empreendida acerca dos aspectos étnicos na saúde de Rondônia, assume um caráter acadêmico. Ainda estamos necessitando é de discutir os aspectos étnicos na saúde de Rondônia. (
Porto Velho, 18 de julho de 1993).

Ao pedir autorização para republicar este artigo (originalmente na edição 75 do Urtiga  (outubro/1993)  - o professor Ari Ott mencionou mudanças em Rondônia. Por exemplo, a malária deixou de ser problema por lá, não por uma boa causa. Poluição dos rios - problema mais recente - criou ambiente onde a larva não se desenvolve... (Silvia Czapski)

Quer saber mais?

Neste blog
* Sobre a FSESP (ou Fundação SESP)


Por aí...
* Mosquito "gigante" da dengue no youtube

* Saudade da SUCAM (e o fim exército mata-mosquito)

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