quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Alice e Juljan

Trecho de carta de Alice Brill para a Galeria Quatro Artes - 1965
Passaram-se quase seis meses e só agora, ao encontrar cópia desta curiosa carta dirigida à Galeria Quatro Artes de Ribeirão Preto/SP, tomo coragem de escrever sobre a partida de Alice Brill Czapski, a companheira de Dr. Juljan por mais de seis décadas que faleceu há quase seis meses, na madrugada 29 de junho deste 2013. 

Curiosa, por revelar uma faceta de Dr. Juljan (o marido mencionado na carta), desconhecida por quase todos que partilhavam das atividades dele como médico, batalhador pelas políticas públicas de saúde e defensor da causa ambiental.  

Alice chegou ao Brasil em 1934, fugindo do nazismo, em ascensão na Alemanha onde ela nascera. Tinha 13 anos e o sonho de seguir a carreira do pai, artista plástico. Por ser  impossível viver de arte, buscou emprego em outras áreas. Conheceu Juljan quando contratada como secretária da firma fundada pelo pai dele, que existiu por poucos anos. 

Viveram um fascinante período, em que, juntos, assinaram a ata de fundação do Museu de Arte Moderna, erigiram a Casa Czapski, projeto assinado pelo hoje famoso arquiteto Vilanova Artigas. Também juntos trabalharam com fotografia nos anos 1950: ele, como assistente dela, enquanto cursava medicina na USP. Mais tarde, os papéis se inverteram para Alice se dedicar às artes, filosofia, ensino e escrita. 

Ao escrever O Cavaleiro da Saúde dei-me conta do quanto as duas carreiras continuaram entrelaçadas. Um exemplo está no trecho da carta que abre esse post. Na época, Juljan lutava com todas suas forças para enfrentar a oposição à Medicina de Grupo, ao mesmo tempo em que dirigia sua Policlínica Central. Nada disso o impediu não só acompanhar a esposa Alice numa exposição fora de São Paulo, onde viviam, como ajudar na sua montagem.

Em 1973, foi a vez de se evidenciar a colaboração de Alice, que ofertou a arte da capa dos Anais do Segundo Congresso Internacional de Medicina de Grupo (acima) primeiro grande evento internacional organizado pela Associação Brasileira de Medicina de Grupo, a Abramge, que Juljan presidia. Realizado em 1973 no então glorioso Hotel Nacional do Rio de Janeiro, o evento atraiu mais de mil participantes do Brasil e Exterior, número impressionante para a época e os parcos recursos disponíveis.  

O Cavaleiro da Saúde está repleto de descobertas como essas, reveladoras de uma convivência especial entre duas pessoas de carreiras tão diferentes.  (Silvia Czapski)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Como fixar médicos em áreas inóspitas?

Após o debate, jantar de confraternização do Congresso da Fepas - Federação Peruana de Administradores em Saúde em 2009: Dra. Luz Loo, liderança do setor no país, desdobra-se apresentando dança típica, e
visitando mesa por mesa, com líderes do setor-saúde. Na foto maior, com Dr. Juljan (gravata listrada).

Impossível não lembrar do epílogo da biografia "O Cavaleiro da Saúde", ao acompanhar as polêmicas em torno da vinda de médicos estrangeiros, em especial cubanos,
para atuarem em áreas carentes, onde brasileiros não se dispõem a ir. 

Um dos temas prediletos de Dr. Juljan - como fixar profissionais de saúde em áreas tão difíceis - foi escolhido por ele para palestrar no Congresso da Federacion Peruana de Administradores en Salud (Fepas), realizado em Lima/Peru, nos idos de maio/2009. Não sabíamos que seria sua última viagem internacional do Cavaleiro da Saúde, e quase derradeira apresentação em público (em junho daquele ano ainda coordenou o Congresso Latino-Americano de Serviços de Saúde, na Hospitalar Feira+Fórum, em São Paulo)!

Intitulada "Fixação de Recursos Humanos Qualificados em Regiões Não Desenvolvidas", a apresentação faz pensar para além dos problemas hoje apontados nas notícias sobre o atual programa governamental "Mais Médicos". Confira (os grifos são meus):
 
"Um dos problemas de difícil solução, especialmente na área de saúde é a fixação de profissionais em áreas subdesenvolvidas e muitas vezes até em áreas periféricas de grandes centros urbanos.
Abordarei neste trabalho as primeiras, pois as causas dos dois problemas são diferentes e as possíveis soluções também diferem.
As tentativas para solução do problema tentadas pelas autoridades fracassaram no Brasil. 
Eram baseadas em remuneração convidativa, ou tentando obrigar recém-formados a estagiarem em regiões distantes, pouco desenvolvidas. Não se levou em consideração uma série de fatores socioeconômicos e culturais que são essenciais. Com isso, ambas medidas fracassaram.
Como exemplo, quero citar um trabalho realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (elaboração de um projeto de assistência a saúde e coordenado por mim) na Ilha do Marajó na Amazônia - a maior ilha fluvial do mundo. Durante grande parte do ano, a maioria das áreas da ilha estão alagadas e só existem meios de condução por via fluvial. As casas estão construídas sobre palafitas. Nestes povoados praticamente não há pessoas com educação de nível superior. As comunicações são deficientes, internet não funciona, não existe infraestrutura de saúde pública. O governo do Estado do Pará ofereceu salários e condições convidativas aos médicos. Alguns se candidataram, mas quem mais tempo ficou nos postos, ficou por três meses.
A única solução possível encontrada nestas áreas é dar um bom treinamento a pessoas não profissionais para dar primeiros socorros, realizar vacinações, promover hidratação oral e principalmente avaliar a gravidade da situação para poder promover a remoção do doente por helicóptero ou barco rápido (lanchas voadoras) até um centro com recursos, no caso a cidade principal da ilha. Esse pessoal também deve ser treinado para dar assistência às grávidas e ao parto. É essencial que haja um treinamento eficiente e uma supervisão por médicos e enfermeiros não residentes, mas também um programa de visitas constantes para fazer uma supervisão e treinamento permanente.
Outro fator limitante para fixar profissionais são as condições ambientais. Posso citar um exemplo, Tabatinga, na Amazônia. A água nem sequer é clorada. O lixo, conforme relatado pelo Dr. André Medici, economista em saúde do Banco Mundial, mesmo do hospital existente, é queimado no quintal. Não há coleta de esgoto. O médico mesmo com boa remuneração não se fixa na cidade. Por falta de profissional habilitado, o cirurgião dentista realiza cirurgia geral de menor porte. No hospital do exército, o melhor da região.
O Secretário de Educação Profissional Tecnológica do Ministério da Educação me referiu que o ministério implantou uma escola técnica em Tabatinga, porém, não consegue contratar o pessoal docente para realizar o ensino. Isso são apenas alguns exemplos da situação geral. Mas existem exemplos que provam que é possível reverter a situação.
No Brasil, na época dos anos 1960, existiu uma experiência positiva para enfrentar o problema, da Fundação SESP (Serviço Especial de Saúde Pública). Este serviço tinha uma política especial com bons resultados. 
* Escolhia as regiões problemáticas e lá estabelecia postos de serviços com serviços ambulatoriais, educação sanitária e alguns leitos para casos de urgências. 
* Não se enviavam para lá simplesmente médicos, enviava-se equipe de saúde. Esta equipe consistia no mínimo por um médico generalista, um médico de saúde pública, enfermeira, educadora sanitária, técnico de laboratório, para realizarem exames básicos e eventualmente outros necessários em vista das condições locais. 
* Esta equipe formava para auxiliá-la agentes de saúde. 
* Cada equipe era ligada a uma instituição de ensino que lhe dava suporte. E dispunha de meio de transporte para ao caso de necessidade remover um paciente. As equipes levavam em geral um projeto de pesquisa com a garantia de que, se bem realizado, seria publicado. 
* Além do mais, havia um plano de cargo e funções que garantia aos participantes das equipes que se destacassem cargos em estabelecimentos de ensino ou bolsa de estudo para aperfeiçoamento no país ou em universidades estrangeiras.
* A área de atenção de cada equipe tinha um território delimitado, o que possibilitava a avaliação das melhorias sanitárias conseguidas por suas atividades.
Essa experiência mostra que para fixar profissionais, condições outras, além da remuneração, são essenciais - existência de uma equipe, condições de moradia, condições adequadas de trabalho, metas profissionais estabelecidas e contato com centro mais avançados para consultas e orientação.
Também é essencial que a equipe tenha a garantia de atendimento de casos complexos em centros adequados.
Infelizmente por motivos políticos partidários as atividades da Fundação SESP, que tinha um suporte internacional foram desativadas.
Dei o exemplo da SESP apenas como exemplo, existem outros no Brasil, sempre isolados, como de hospitais que conseguem fixar profissionais em regiões isoladas. Nas condições básicas, seguem os princípios adotados pela SESP.
Portanto existem soluções, mas dependem de gestão competente e adequada.
Não conheço as condições nas demais regiões da America Latina, mas suspeito que sejam semelhantes as do Brasil. Entre nós o problema é preocupante, e não vejo medidas das autoridades para resolvê-lo, espero que este Congresso [da Fepas, 2009] consiga ser um ponto de partida para um estudo sério do problema".
No final do capítulo, encerro a biografia do Cavaleiro da Saúde com uma incrível história contada por Dra. Luz Loo (nas fotos que ilustram este post) numa homenagem póstuma a ele em 2010. Mas isso fica para quem lê o livro. (Silvia Czapski)

terça-feira, 14 de maio de 2013

Despedida de mãe

Tantas mensagens em torno do Dia das Mães, mas não consigo esquecer da mais linda que li, carta de uma mãe a seu filho pouco antes de partir para o destino final. Não poucas vezes vi lágrimas brotarem dos olhos de meus amigos durante a leitura.

Por isso, tomo a coragem e a liberdade de compartilhá-la aqui, pela primeira vez via internet, neste espaço dedicado à biografia de Dr. Juljan Czapski, O Cavaleiro da Saúde.

Atestado de óbito Ella Dyhrenfurth, Thieresienstadt, 3/dez/1942
documento raro para morte em campo de concentração.
Foi escrita em agosto de 1942  por Vally Ollendorff - tia-avó de Juljan -, para seu filho Ulrich, na antevéspera de seu destino final: o campo de concentração de Thieresienstadt, famoso "cartão de propaganda" que Adolf Hitler usava quando queria demonstrar o tratamento "humanitário" a seus prisioneiros na II Guerra Mundial.

Tanto é que temos o atestado de óbito, com data e local, obviamente só entregue à família após o fim da Guerra Mundial. (veja ao lado uma certidão negativa)

Naquela época, Juljan tinha 17 anos e já vivera uma saga de dois anos em meio à guerra, para chegar ao Brasil com seus pais e irmãos. Mas sua avó materna, Ella Dyrenfurth, não pudera sair da Alemanha. E a irmã Vally, num incrível ato de solidariedade, acompanhou-a até o fim.

Isso mesmo. Dos Estados Unidos, o filho Ulrich conseguira um visto para a mãe escapar para Cuba. Mas isso significaria deixar sozinha a amada irmã Ella naqueles duríssimos dias de conflito mundial.

Mesmo que sob forte censura, o campo de Toermersdorf foi o último pouso de onde as duas ainda puderam enviar cartas. E isso também está nas entrelinhas desta emocionante despedida de Vally Ollendorf para seu Ulrich:

Toermersdorf junto a Rothenburg, 24 de Agosto de l942

Meu amado, meu querido filho.

Dentro de dois dias sairemos daqui, e o futuro parece tão escuro que não está longe o pensamento de que este novo local será o último em nossa peregrinação e, quando você meu filho, tiver esta carta em mãos, não estaremos mais sendo jogados de um lugar para outro, pois todo o sofrimento tem um fim, também a incerteza, e a paz estará conosco e em torno de nós. Deseje me esta paz. meu querido filho, e não fique triste demais, acredite assim é melhor.

Eu já estava mesmo no fim da minha vida, e a mãe que você conheceu, meu querido filho, essa não existe mais. As tristezas, dificuldades e incertezas foram demais para mim e jamais consegui superar a morte de Wolfgang, que em 27 de Agosto completará um ano. A dor aumenta cada vez mais e as cartas que recebo de seus camaradas apenas me mostram o que ele se tornou e o que ainda poderia vir a ser. Suas cartas para mim e seu pai mostravam uma comovente gratidão por sua infância e juventude.

Também você, meu querido filho, pode ter a consciência por toda tua vida que você sempre foi uma fonte de pura alegria para teus pais e que mesmo nos tempos às vezes difíceis da adolescência jamais perdeu o caráter íntegro ou nos deu motivos de desgosto ou tristeza. Que tua vida vá de sucesso em sucesso, meu querido filho, e que você permaneça como era em criança, bondoso, modesto e grato por tudo o que é bom e belo.

Que encontre tanta felicidade em teu filho como nós encontramos em você. Que as bênçãos que suplico para você se tornem realidade e que possa ter uma vida alegre e feliz com Anne, tua fiel companheira para a vida, e com a qual você me trouxe uma filha querida. Não poder testemunhar vossa vida na América foi muito mais triste para mim do que vocês podem imaginar.

Todas tuas cartas repletas de carinho filial, despertavam em mim o eco da saudade e da alegria de um reencontro, e faziam com que eu tentasse todo o possível para me juntar a vocês. Se eu não escrevia com tanta frequência sobre minha angústia, era por amor, porque imaginava que fosse melhor para vocês. Mais uma vez digo, e sei que me entendem, eu estava e estou feliz por vocês, se bem que cheia de saudades. O destino não permitiu que eu fosse aí, eu era uma necessidade para tia Ella, e penso que isso vos consolará - queria tanto que assim seja.

Agora meu querido filho, quero me despedir. Quero te agradecer mil vezes por todo o amor, toda a gratidão, toda a alegria, e o raio de luz que trouxe na vida do teu pai e na minha desde o dia em que você nasceu. Que a lembrança da casa paterna e da tua infância te iluminem como uma estrela brilhante e protetora meu querido, amado filho.

Mãezinha [Vally Ollendorf para o filho Ulrich]

No livro O Cavaleiro da Saúde há um pequeno trecho de outra carta, escrita por Ella para a filha Ilza - mãe de Juljan -, dez meses antes de serem mandadas para o campo de Thieresenstadt. Ella tinha então 71 anos de idade. Também comovente.

Toermersdorf, 27-29 de outubro de 1941:

Minha querida Ilse,

Queria tanto poder descrever direito como estamos passando. Em primeiro lugar quero dizer: não se preocupem demais realmente é suportável e, se tivessem entrado aqui hoje cedo quando o correio chegou com as cartas de vocês e alguns presentinhos, também ficariam mais tranquilos.

Ilse, Fritz, nem posso lhes dizer quanta paz e força interior me trazem suas vidas, vocês juntos e conscientes da felicidade dessa união. Mesmo se minha preocupação por Werner é grande e a lembrança de Hertha nunca me abandona, minha gratidão pelo destino de vocês é tão grande que suporto muitas coisas com mais facilidade.

É um golpe duro para mim que tenha que me separar de tia Vally que, por esforços que Ulrich conseguiu um visto para Cuba. Naturalmente não posso esperar que ela deixe de ir, no entanto no momento ainda estamos juntas e felizes e satisfeitas com isto. Também temos tanto que fazer que os dias passam parecendo horas, não nos dando tempo de pensar, e isto é bom.

É a terceira vez que estou escrevendo hoje, e escrevi tudo que podia ser escrito. Os dias aqui são todos iguais mas cada um traz sempre algo de diferente. Você certamente entendeu o significado de "depósito de lixo", e Albert Schweitzer diz tão bem em um de seus livros: "Servir aos outros é algo que ninguém pode nos roubar". É realmente um sentimento gratificante quando podemos ajudar de verdade uma pessoa merecedora com um pedaço de pão ou bolo, ou estamos na situação de aliviar um pouco a tristeza e preocupação com um conselho ou uma palavra de carinho. Correm muitos boatos falsos, por outro lado muita coisa, diria tudo, depende do modo de encarar a vida.

A campainha está tocando, temos que buscar o café. Estamos muito ocupados descascando batatas ou em tarefas semelhantes, mas quem está pior são os que com este tempo horrível tem que trabalhar lá fora no campo.

Pus a carta de lado enquanto alegrava uma mãe fazendo jogos de escrever com sua filha de 14 anos e, para alegria de muitos, ajudei a dobrar roupas.

Tudo de bom para vocês e. sempre com vocês.

Sua mãe [Ella Dyhrenfurth para a filha Ilza]

Extraí estes textos de uma pequena publicação preparada nos anos 1990 por Jan Czapski, irmão do Cavaleiro da Saúde, que reuniu escritos de Ilza e Fryderyk Czapski com apoio da sobrinha Inês Czapski Dellape, filha de Juljan, na tradução para o português.

Detalhe importante, já conhecido por quem leu a biografia de Dr. Juljan: Ilse e Fritz - mencionados na segunda carta, são os nomes em alemão de Ilza e Fryderyk Czapski, pais do Cavaleiro da Saúde. Assim foram citados por terem nascido quando a Polônia ainda pertencia ao Império austro-húngaro. No livro demos preferência às novas grafias, que utilizaram inclusive no Brasil. (Silvia Czapski)

segunda-feira, 29 de abril de 2013

(dr.) Paulo Vanzolini (1924-2013)

Acostumado a dormir cedo, para cedo acordar, Doutor Juljan gostava de contar sobre uma das exceções a essa regra, nos tempos de Faculdade de Medicina da USP. De uma turma anterior à dele, Paulo Vanzolini era o melhor para revisar as estatísticas dos trabalhos de seus colegas. Mas, como bom boêmio, foi preciso encontrá-lo no bar, após 23h...

Vanzolini morreu nesse domingo, 29 de abril, poucos dias após completar 89 anos. Mais conhecido como compositor de músicas como Ronda
e Volta por cima, teve a zoologia como maior paixão, e a medicina como meio para lá chegar. Cursou por conselho de André Dreyfus - também referência para o Cavaleiro da Saúde - como degrau para depois se especializar em zoologia na universidade de Harvard, nos EUA.

Estimulada pelas histórias de Dr. Juljan, busquei Vanzolini em 1992 no Museu de Zoologia da USP, que ele dirigia e hoje guarda seu acervo de mais 25 mil itens - entre livros (alguns raros), periódicos e mapas. Estávamos a três meses da Eco-92. Foi uma delícia de entrevista para o Urtiga, jornal da Associação Ituana de Proteção Ambiental (Aipa) que idealizei e editei por mais de 20 anos.

A partida de Vanzolini estimula-me a reproduzir aqui essa entrevista publicada em março de 1992, que rendeu - a partir de então - vários convites do cientista-compositor, sobretudo para eventos musicais em que participou:



... DEVEMOS RESPEITAR A NATUREZA POR SERMOS BONS E DIREITOS
Paulo Emílio Vanzolini, autor de Ronda e diretor do Museu de Zoologia de São Paulo, fala de boemia, música, e zoologia.

Sua avó materna era ituana. Do tempo em que se falava "Carminha de Umbelina" (Carminha, filha de Umbelina). Mas ele pouco frequentou o município. "Só ia na Semana Santa, ver o diabo e Judas serem queimados na Praça". Famoso pela música Ronda, da qual é autor, Paulo Emílio Vanzolini diz que deixou a boemia. "Tem a hora em que passa a vontade de sair à noite. Quem força e continua é por que quer aparecer, não é boêmio sincero", dispara.
Apesar desta "retirada" e ao contrário do que muitos imaginam, suas músicas continuam a proporcionar renda extra: só no último trimestre, os direitos de Ronda (gravada pela primeira vez em 1953) superaram 1 milhão de cruzeiros [obs.: cerca de R$ 3,6 mil, na conversão pelo IGP-M]. "É uma das mais pedidas nos karaokês da Liberdade, bairro japonês paulistano", relata Vanzolini, cercado de papéis em sua sala, no Museu de Zoologia de São Paulo, após o expediente.
Até poucos anos atrás, ele deixava por algumas horas a função de diretor de museu para fazer pessoalmente fila na Sociedade Arrecadadora de Direitos Autorais. "Era divertido. Um encontro de compositores populares. Agora é minha filha quem vai receber por mim." (ele é pai de 5 filhos e a neta mais velha tem 20 anos). Os direitos - esclarece - vem quase que exclusivamente das casas noturnas. "As gravadoras conseguiram, no tempo do Presidente Geisel, vetar a lei que obrigaria numerar discos. O compositor popular se atrapalharia com a numeração, alegavam, a companhia prestaria informações a eles. Foi como botar o cabrito tomando conta do canteiro de alface na horta", diagnostica, criticando a falta de controle na área.
BOEMIA E CIÊNCIA
Vanzolini conta que descobriu a música bem depois da zoologia: "Aos 11 anos, quando visitei o instituto Butantan pela primeira vez, apaixonei-me pelos répteis e pela zoologia. Aos 14, consegui estágio no Instituto Biológico. Mas me recomendaram estudar medicina, curso reconhecido internacionalmente, que me possibilitaria realizar pós graduação nos Estados Unidos. Na faculdade, fazíamos o show medicina, anualmente. Comecei a compor para isso."
De volta ao Brasil, Vanzolini combinou a boemia e o convívio com artistas, com o ensino de estatística aplicada à pesquisa médica na Faculdade onde estudara. "Orientei mais de 200 teses", orgulha-se. Em 9 de novembro de 1946, foi convidado a dirigir o setor de répteis do Museu de Zoologia, então vinculado à Secretaria da Agricultura. "Ele foi fundado há 98 anos, como anexo do Museu do Ipiranga. Nesta minha gestão consegui passá-lo para a Universidade de São Paulo", historia. Reconhecendo que o local é quase desconhecido do grande público e mal estruturado para receber visitantes, Vanzolini lembra que, por outro lado, a coleção de pesquisa de ofídios está entre as melhores do mundo. Assim como o levantamento bibliográfico sobre répteis. 
Abrindo uma das muitas gavetas de seu imenso fichário-arquivo, ele conta o segredo da riqueza de informações bibliográficas. "Para cada nova publicação, faço a respectiva ficha, classificando por ano de edição e assunto. Então, tiro 200 cópias e envio a pesquisadores de vários países, com quem mantenho intercâmbio. Eles, por sua vez, também me informam sobre novidades." Meticulosamente arranjadas, as fichas renderam a Vanzolini o convite para elaborar a 2.a edição do levantamento bibliográfico sobre répteis, promovido pelo importante Smithsonian Institute. Após cuidadosa encadernação, Vanzolini guarda um exemplar dos dois volumes desta obra em sua estante. Onde estão obras de muitos autores e também os 117 trabalhos que já publicou.
EXPERIÊNCIAS INUSITADAS
O papel de diretor de um órgão técnico do Estado - o Museu de Zoologia - trouxe ao cientista experiências inesperadas, como a de ser perito em disputas judiciais. "Pediram para colocar preço num jacaré, que fora caçado e morto. Minha primeira reação foi observar que, se a caça do animal é proibida, ele não pode ter preço. Depois alguém propôs o cálculo na base de quanta carne o bicho come. Se vive tantos anos, come diariamente tanto, o quilo de carne custa X, e por aí foi o cálculo para estabelecer a multa."
Vanzolini condena as listas oficiais de espécies em extinção. "Na natureza, cada par deixa seu par. Para as cobras, por exemplo, o ser humano funciona como um predador. É como se fosse um gavião que as ataca. Mas as cobras são difíceis de encontrar e assim se defendem. No caso dos jacarés, a experiência mostra que as populações se recuperam rapidamente, quando as condições voltam a ser favoráveis. Eles estavam ameaçados, até que se proibiu o comércio de peles. Longe da fronteira com outros países (onde o contrabando prossegue), ou seja, em locais como o baixo Amazonas, a população rapidamente voltou a crescer. Jacaré é manso, não ataca o Homem", garante.
Tartarugas são répteis que se reproduzem socialmente: Vanzolini já presenciou um encontro de cerca de 400, no rio Trombetas, no período reprodutivo. Isso representa um ponto de vulnerabilidade, pois é fácil atacá-las. Mesmo assim, as tartarugas estão se mantendo, diz o especialista. A maior ameaça, segundo ele, é quando o ecossistema - local onde os animais vivem - é destroçado. Apesar de criticar o passionalismo dos ecologistas, Vanzolini reconhece: "Eles são indispensáveis na ação em defesa do meio ambiente. São corte da mina da faca". 
Que recado dá o especialista para o cidadão ituano? "Que trate dos problemas ambientais não do ponto de vista do interesse, de cuidar da natureza porque ela poderá servir-lhe no futuro, ser fonte de renda. Ao contrário, devemos respeitar a natureza por sermos bons e direitos". 
Se este conceito é contrário ao que se prega nos preparativos da Eco 92, sobre uso e sustentabilidade dos recursos naturais? "Taí o que Paulo Emílio Vanzolini diz", encerra o entrevistado, sem mais palavras. (Entrevista a Silvia Czapski, Jornal Urtiga, Março 1992)

LINKS
* Ronda - gravada em 1953 por Inezita Barroso (no mesmo compacto simples da famosa Marvada Pinga) 


* Mais composições de Paulo Vanzolini - músicas e letras no site letras.mus.br

* Zoólogo, Vanzolini teve grande importância para a ciência - artigo de Reinaldo José Lopes, no jornal Folha de São Paulo, sobre participação de Vanzolini na concepção da Teoria dos Refúgios, junto com o geógrafo Aziz Ab'Saber (1924-2012).

* Um homem de moral - Documentário de Ricardo Dias sobre o músico Vanzolini, que antes fez 'Os Calangos do Boiaçu' e 'No Rio das Amazonas' sobre seu papel como cientista.


EM TEMPO...
Curiosa para visitar novamente o Museu de Zoologia da USP, fechado para reformas até 2014. Localizado quase atrás do famoso Museu do Ipiranga, ele foi projetado por Christiano Stockler das Neves, também arquiteto da Estação Julio Prestes - onde hoje está a Sala São Paulo. Segundo o site da instituição, foi primeiro prédio paulista construido especificamente para ser museu. (Silvia Czapski)



sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Três anos


 

Juergen Koch, em 2007
(foto: Silvia Czapski)
Estimada Silvia:
En el día de aniversario del fallecimiento de tu querido padre, quería asegurarte de los cariñosos recuerdos que me unen  con él y decirte que te acompaño en tu pena y en tu soledad.
Afectuosamente,
Juergen

Há exatamente um ano - 12 de janeiro de 2012 - me emocionei com essa mensagem eletrônica de Juergen Koch, que vivia em Buenos Aires e tão carinhosamente rememorou o falecimento do primo, Juljan Czapski. Aos 97 anos, ele não só leu e se entusiasmou com a biografia Cavaleiro da Saúde, como contou duas histórias complementares incríveis, que se tornaram imperdíveis posts deste blog. (para ler, clique aqui e aqui

Quis o destino que Juergen deixasse este mundo em 29 de outubro último, conforme relataram as filhas, com a mesma delicadeza que marcava o pai.

Simultaneamente a essa lembrança, neste terceiro aniversário da perda de Dr. Juljan, rebrota em minha memória a repercussão de uma reportagem que tomou dois terços de página do jornal Folha de São Paulo, em 19 de janeiro de 2010.


Folha de São Paulo, 19/01/2010 
Seu título já diz tudo: Plano barra benefício a pioneiro do plano de saúde. Pessoas de todo país entraram em contato conosco, para manifestar a solidariedade.

O eficiente Estêvão Bertoni até poderia ter dado a notícia imediatamente após o falecimento do Cavaleiro da Saúde. Mas seguiu o ritual jornalístico de aguardar alguns dias, dando chance ao "outro lado" de se pronunciar. 

Vale à pena ler (ou reler), a reportagem, que tomo a liberdade de ilustrar com imagens encontradas ou incorporadas posteriormente no arquivo de Dr. Juljan:  
São Paulo, terça-feira, 19 de janeiro de 2010 
Plano barra benefício a pioneiro do plano de saúde.

Juljan Czapski, 84, morreu em decorrência de tumor no cérebro sem conseguir home care. 
Bradesco Saúde diz que prestou a cobertura prevista no contrato; médico fundou, nos anos 1950, a 1ª empresa de medicina de grupo do país. 
ESTÊVÃO BERTONI  
DA REPORTAGEM LOCAL
Policlínica Central, anos 1969: Dr. Juljan ao fundo,
onde a parede muda de cor (foto: arquivo pessoal)
Ele foi pioneiro dos planos de saúde no Brasil, ao fundar nos anos 1950 a primeira empresa de medicina de grupo do país.  
Polonês, médico pela USP e com mais de meio século dedicado à área, Juljan Czapski morreu na semana passada, aos 84 anos, em desavença com o plano que o atendia.
Médicos, familiares e até amigos tentaram convencer a Bradesco Saúde, seu plano, a conceder-lhe o home care, atendimento personalizado em casa, que não estava em contrato. O benefício não saiu, e a família alega nunca ter recebido sequer uma resposta formal.

A seguradora diz que prestou a cobertura prevista contratualmente. 
Czapski, que morreu na última terça em decorrência de um tumor no cérebro diagnosticado no meio do ano passado, tinha o plano pago pelo Sindhosp (sindicato dos hospitais paulistas), do qual era diretor.
Em novembro, ele foi internado no hospital Nove de Julho.
No início de dezembro, o médico responsável pelo seu tratamento solicitou ao plano que o paciente tivesse o home care - foi um dos vários pedidos feitos pela equipe médica.
O benefício não foi dado.
A partir de então, a família diz ter contatado diversas vezes a Bradesco Saúde, para pedir o serviço. Segundo a filha Silvia, os funcionários da empresa evitaram responder por escrito.
As conversas eram por telefone.
Até um amigo da família, o economista André Médici, consultor nos EUA do Banco Mundial na área de saúde, chegou a telefonar e enviar e-mails ao Bradesco, antes do Natal, na esperança de que concedessem o benefício. Não teve resposta.
Czapski não conseguia mais andar, tinha dificuldades para movimentar os braços e para falar. A família, então, custeou e montou em casa "um esquema tosco de home care", como descreve o filho Cláudio, que também é consultor de saúde.
"A curto prazo, eventualmente se economiza um trabalho de home care, mas o fato de ele ser negado acaba agravando a condição de vida do paciente e ele retorna ao sistema numa situação mais grave, que gera custos muito maiores", diz.
Segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que controla os planos, não há a obrigatoriedade de que o home care esteja em contratos, mas, por livre negociação com os clientes, eles podem oferecê-lo.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1901201014

ARTE: 
MÉDICO TAMBÉM PARTICIPOU DA FUNDAÇÃO E DA DIREÇÃO DO MAM, EM SP
Juljan Czapski e Alice Brill nos anos 1990
Médico que, em 1956, criou a Policlínica Central, primeira empresa do país de medicina de grupo a oferecer serviços a empresas, Juljan Czapski também foi ligado às artes. Quando ainda estudava, foi assistente de fotografia da mulher, a artista plástica e fotógrafa Alice Brill, 89. Czapski participou da fundação do MAM-SP (Museu de Arte Moderna), do qual foi diretor. Era ainda ligado a questões ambientais, tendo fundado uma associação de proteção ambiental em Itu (SP).
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1901201015.htm

Outro lado.
Bradesco Saúde diz que prestou assistência prevista
DA REPORTAGEM LOCAL

Em nota, a Bradesco Saúde afirma que prestou "toda a cobertura médica e hospitalar prevista contratualmente" durante o período em que o médico Juljan Czapski esteve doente e em tratamento.
"Todas as informações sobre o seguro de saúde do senhor Juljan Czapski foram prestadas ao seu médico assistente e à sua família, na pessoa da sua filha, Silvia Czapski, em reiterados contatos mantidos com a Bradesco Saúde", diz a nota.
A seguradora informa que uma internação foi solicitada no dia 6 de novembro de 2009, no hospital Nove de Julho, com duração até o dia 7 de dezembro, quando o paciente recebeu alta do médico assistente.
Já no dia 12 de janeiro, continua a nota, "o senhor Juljan voltou a internar-se, no Hospital Nove de Julho, condição esta que prevaleceu até o óbito, na mesma data".
A Folha teve acesso a um pedido, feito em 7 de dezembro, por um dos médicos responsáveis pelo tratamento, em que se reforça a necessidade do home care. A avaliação médica dizia: "Trata-se de um paciente que se encontra afásico [enfraquecido] e incapacitado para a marcha [caminhar] e totalmente dependente de cuidados e enfermagens médicas". 
A Bradesco Saúde não comentou sobre o pedido negado do home care e, questionada se já concedeu o serviço mesmo em casos não previstos em contrato, nada respondeu.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1901201016.htm
2008, congresso em Buenos Aires.Lideranças latino-americanas do setor-
-saúde, se reunindo para a foto oficial dos organizadores e palestrantes
(Dr.Juljan ao fundo, perto do quadro). Foto cedida por Dra. Luz Loo, do Peru.
Se Dr. Juljan estivesse vivo, provavelmente teria usado a reportagem para incitar o debate sobre políticas públicas relacionadas ao home care, tema que avança a passos lentos, apesar do forte vínculo com racionalização e humanização de tratamentos de saúde.

Em 23 de janeiro de 2010, apenas quatro dias após a publicação na Folha de São Paulo, André Medici, coautor de O Cavaleiro da Saúde, postou um esclarecedor artigo sobre home care em seu blog. Respondia, com isso, a pergunta de um leitor do artigo-homenagem que Medici escrevera para o mesmo blog em 15 de janeiro. Foi lá que, pela primeira vez, usou a expressão Cavaleiro da Saúde. Tão boa definição de Dr. Juljan, que se tornou, por votação, o título da biografia. 

Para saber mais
* A Saúde em Casa e os Planos de Saúdepara entender o 'Home Care' e suas perspectivas como parte do setor-saúde, artigo de André Medici, em seu blog, Monitor da Saúde.
* Juljan Czapski: O Cavaleiro da Saúde (1925-2010): artigo-homenagem de André Medici, postado, em 15/1/2010.


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Morre Dr. Juljan Czapski, um grande visionário da saúde: Notícia do site da Feira+Fórum Hospitalar de 13/01;2010.

* Vídeo-homenagem a Dr. Juljan: não canso de ver e recomendar, sobretudo pelas imagens iniciais filmadas em 1929 na fazenda da Polônia onde dr. Juljan nasceu, Apesar de feito antes de iniciarmos a produção de O Cavaleiro da Saúde (2008), é quase um trailer do livro. Sete minutos. (Silvia Czapski).