sábado, 17 de outubro de 2015

Quem afinal criou a Medicina de Grupo no Brasil?

Congresso Internacional de Medicina de Grupo, RJ, 1973: (esq. para dir.) Dr. Silveira Pinto, ex-Samcil, é o terceiro e Dr Juljan - então presidente da Abramge, mais alto e ao centro - conversa com o então ministro da saúde (de bigode)


Duas folhas de papel datilografadas só agora encontradas trazem à luz um evento varrido pelo tempo, que teria enriquecido ainda mais o conteúdo do livro Cavaleiro da Saúde se antes descoberto.


Trata-se de cópia-carbono, não assinada e não datada, de carta endereçada à então poderosa Revista Manchete. Só que, pelo conteúdo, é fácil adivinhar que foi escrita em 1970 por Henning Von Koss - diretor de RH da Volkswagen do Brasil em 1957, quando a Policlínica Central conquistou a conta da indústria, então com apenas 129 funcionários. 

Ela contesta, contundentemente e com fatos, afirmações de Dr. Luis Roberto Silveira Pinto, que se autointitulou na reportagem idealizador e fundador da Medicina de Grupo no Brasil. O principal: registro da Samcil, de Silveira Pinto 4 anos depois do da Policínica, do Cavaleiro da Saúde.


Leia a carta transcrita abaixo (negritos meus), até porque essa lenda ainda persiste em alguns setores. No final, trago complementos, inclusive algo que não pude publicar no livro.


À
MANCHETE

Prezados Senhores,

Tive a oportunidade de ler, no nº 971, de 28 de novembro último, da sua conceituada revista, sob "Brasil em Manchete", à página 167, o artigo que se refere a "Um jovem pioneiro na Medicina de Grupo", Neste artigo, V. S.as, informam que, no fim de 1960, o jovem médico Luiz Roberto Silveira Pinto, recém-saído da Escola Paulista de Medicina, viu-se com o diploma nas mãos e dois cami­nhos pela frente, isto é, ser funcionário público ou abrir consul­tório particular, tendo repelido a ambos. Que, em viagem no ex­terior, entrou em contato com uma experiência fascinante, a qual, de volta ao Brasil resolveu dedicar-se por inteiro, ou seja, introduzir a Medicina de Grupo em nosso País.
Diz, ainda, o referido artigo, que o trabalho do Dr. Luiz Roberto frutificou no Brasil e seus resultados têm sido tão bons que grandes empresas como a Volkswagen, Philips, Rhodia, Olivetti, entre muitas outras, entregaram seus empregados aos cuidados desse tipo de entidade.

Sabendo que a excelente revista MANCHETE visa sempre informar seus leitores corretamente
, lamento informar-lhes que o conteúdo do re­ferido artigo não corresponde à realidade e espero que V, S.as, a bem da verdade, façam a devida correção em uma de suas próximas edições.

Para uma das empresas citadas no referido artigo, trabalhei como Gerente do Departamento de Pessoal, pelo per
íodo de 15 anos e meio. Nela me encontrava em agosto de 1957, quando celebrou um acordo de assistência aos seus empregados, com uma entidade de Medicina de Grupo, cujo superintendente Dr. JULJAN D, CZAPSKI (este sim, foi o pionei­ro da Medicina de Grupo no Brasil). O início das atividades de sua organização data de 1956, na Rua Galvão Bueno, bairro da Liberdade, em São Paulo, o que é facilmente comprovável.

Ora, se o acordo entre a empresa (uma das mencionadas em seu artigo) para a qual prestei meus servi
ços e a entidade que o Dr. Juljan D. Czapski dirige foi celebrado em 1957, e o Dr. Luiz Roberto Silveira Pinto somente se formou em 1960, claro está que não poderia ter sido este último quem introduziu tal sistema em nosso País.

Para esclarecer melhor o que acabo de lhes expor, posso adiantar-lhes que o Dr. Juljan D. Czapski foi o primeiro e
é o atual presidente da ABRAMGE (Associação Brasileira de Medicina de Grupo). Foi vice-presidente do 1º Congresso Internacional de Medicina de Grupo, reali­zado no Canadá em maio último [1970]. E, na qualidade de presidente da ABRAMGE, foi encarregado de organizar 2º Congresso Internacional de Medicina de Grupo a realizar-se no Brasil em 1973, exatamente este que V. S.as mencionam em seu artigo.

N
ão pretendo, em absoluto, desmerecer os trabalhos que o Dr. Luiz Roberto Silveira Pinto, a quem não conheço, possa estar desenvolvendo em prol da Medicina de Grupo no Brasil. Mas, daí, para a sua apresentação como pioneiro, vai uma distância muito grande.

Completando as minhas informa
ções, seguem abaixo alguns trabalhos realizados pelo Dr. Juljan D, Czapski:

* Planos Pré-pagos de Medicina de Grupo – Exper. em São Paulo No IX Congresso Medico Social Panamericano - Lima - 1966

* Estudo Comparativo entre Natimortalidade na Cidade de Santo André a uma População Assistida por Plano Pré-pago de Medicina de Grupo Rev. Bras. Med. Social l : 26 s 66-SP

* Servicio Integrado de Atención Medica: Sus Ventajas en Medicina Ocupacional. Medicina ADMIN; 2 : 101 : 68, Buenos Aires

* Requisitos para a Assistência Médica a um Grupo Populacional de São Paulo. Montevidéu – 01-04-1964

* Serviço Médico Hospitalar Integrado oferecido a uma Comunidade de Trabalhadores - Resultados Obtidos - 1964 - São Paulo

* Redução do Absenteísmo através do Tratamento dos Acidentes do Trabalho pela própria empresa (em colaboração) - 1964 - São Paulo

* Custo de Assistência Médica Integral a um Grupo Populacional em Re­lação a seu Salário e Produtividade. Santiago do Chile - 1965

* Planos Pre-pagos de Medicina de Grupo - Considerações socio-econômicas e éticas. Porto Alegre - 1965

* Estudo Socio-econômico de um Grupo Populacional Assistido mediante Plano Pré-pago de Medicina de Grupo. A. P. M. - Dep. Med. Trabalho - 1966

* Vorzug der Gruppernmedizin als werksärztlicher Dienst in Entwicklungslandern. Viena - 1966

* The Importance of Group Medicine in Public Health - 1 Intern, Congress on Group Medicine. Winnipeg - 1970
 Quando V.S.as efetuarem, espero, num dos seus próximos números, a cor­reção do artigo em pauta, muito apreciaria se pudesse ler, também, quais os trabalhos já apresentados pelo Dr. Luiz Roberto Silveira Pinto pois serão, para mim, conhecimentos a mais sobre este tipo de medicina. Aliás, acredito que a melhor forma de esclarecer devidamente o assunto seria a publicação, também sob "Brasil em Manchete", da posição exata destes dois facultativos, em relação à Medicina de Grupo. Assim, os leitores de Manchete e que ganhariam, pois, além de corretamente informados, ainda teriam melhores elementos para julgar sobre o valor desta atividade médica.


O que teria motivado essa afirmação de Silveira Pinto em 1970? Conflito velado? Jogo de vaidades? Marketing mentiroso? Sede de imortalidade?
 

A lembrar que o fundador da Samcil conhecia bem Dr. Juljan e sua Policlínica Central. Em 1966, assinaram a carta fundação da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), que o Cavaleiro da Saúde presidiu nos primeiros dez anos. 

Confesso que me surpreendi quando, em 2010, um ex-diretor da Policlínica chegou a me dizer, em depoimento, que Silveira Pinto estagiou por alguns meses na Policlínica enquanto estudante de medicina. Se sim, porque teria dito que soube desse sistema em viagem ao exterior?

História apenas sugerida nas entrelinhas do livro O Cavaleiro da Saúde relaciona-se à perda da conta da VW, que se tornara a maior cliente da Policlínica. Quem assumiu foi justamente a Samcil. O documento mais próximo da verdade, que menciono no livro, é uma reportagem da revista da Abramge de 1991, onde Dr. Juljan disse: "uma desleal concorrência predatória ampliou significativamente o já preocupante quadro", seguindo-se um relato da derrocada da Policlínica, que acabou por vender a carteira de clientes justamente para... Samcil. 


Nos depoimentos, em off (o que impediu escrever com todas as letras no livro), relatos de propina dada à pessoa do alto escalão da VW, e até insinuação desta pessoa ao Cavaleiro da Saúde (que, segundo mesmo relato, não aceitou) de que, se pagasse mais, permaneceria com o contrato. O resto - como se deu o fim da Policlínica após a não renovação - está no livro.  

Sinal dos tempos? Dr. Sergio Marques da Cruz contou em seu depoimento para o livro sobre a existência dos chamados "paqueiros", pessoas contratadas por algumas empresas de medicina de grupo no final dos anos 1960 para "roubar" contratos de suas concorrentes. Um paradoxo, dado que eram ainda poucos serviços de medicina de grupo no mercado brasileiro, e um enorme potencial de clientes (indústria, comércio, serviços que não conheciam a modalidade) a conquistar.

Não tenho informações de que a carta aqui reproduzida tenha sido publicada na Manchete, ou de que a revista - que deixou de circular em 2000 - tenha corrigido as informações errôneas por meio de nova reportagem sobre o tema.

Pouco depois desse evento, surgiram trabalhos de protagonistas do setor, como o livro Medicina de Grupo, do médico e fundador do Hospital São Luiz, Renato Fairbanks Barbosa (
Mestre Jou, 1973) - também fundador da Abramge -, e a dissertação de mestrado Medicina de Grupo: Planos de Pré-pagamento de Assistência Médica e Saúde Pública, do próprio Dr. Juljan, (Faculdade de Saúde Pública da USP, 1972).


Quanto à Samcil, uma das mais recentes notícias, de 13/setembro de 2014 no jornal Valor Econômico, dão conta de que a empresa, em liquidação judicial desde 2011, teve seu Hospital Panamericano desapropriado pelo governo estadual por R$ 37 milhões, valor este questionado pelo filho e herdeiro Luis Roberto Horst Silveira Pinto, empresário do setor imobiliário.

Foi neste hospital, que Horst encontrou o pai, Luis Roberto Silveira Pinto, morto, por suicídio, em 4 de abril de 2011. Segundo páginas de economia dos jornais da época, a empresa, gigante do setor em crise, estava sob intervenção da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e tentava vender três de seus sete hospitais para sanar dívidas de R$ 70 milhões.

O mais curioso é que ainda hoje encontramos na internet notícias em que Silveira Pinto diz que, em vias de se formar médico no ano de 1960, teria tido a ideia - segundo ele inédita no Brasil -, de criar sua empresa que teve como primeira cliente o grupo de comunicação que reunia emissoras de TV e rádio Record. Mais um motivo  para publicizar esta carta à TV Manchete, escrita há mais de quatro décadas (Silvia Czapski)

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