terça-feira, 14 de maio de 2013

Despedida de mãe

Tantas mensagens em torno do Dia das Mães, mas não consigo esquecer da mais linda que li, carta de uma mãe a seu filho pouco antes de partir para o destino final. Não poucas vezes vi lágrimas brotarem dos olhos de meus amigos durante a leitura.

Por isso, tomo a coragem e a liberdade de compartilhá-la aqui, pela primeira vez via internet, neste espaço dedicado à biografia de Dr. Juljan Czapski, O Cavaleiro da Saúde.

Atestado de óbito Ella Dyhrenfurth, Thieresienstadt, 3/dez/1942
documento raro para morte em campo de concentração.
Foi escrita em agosto de 1942  por Vally Ollendorff - tia-avó de Juljan -, para seu filho Ulrich, na antevéspera de seu destino final: o campo de concentração de Thieresienstadt, famoso "cartão de propaganda" que Adolf Hitler usava quando queria demonstrar o tratamento "humanitário" a seus prisioneiros na II Guerra Mundial.

Tanto é que temos o atestado de óbito, com data e local, obviamente só entregue à família após o fim da Guerra Mundial. (veja ao lado uma certidão negativa)

Naquela época, Juljan tinha 17 anos e já vivera uma saga de dois anos em meio à guerra, para chegar ao Brasil com seus pais e irmãos. Mas sua avó materna, Ella Dyrenfurth, não pudera sair da Alemanha. E a irmã Vally, num incrível ato de solidariedade, acompanhou-a até o fim.

Isso mesmo. Dos Estados Unidos, o filho Ulrich conseguira um visto para a mãe escapar para Cuba. Mas isso significaria deixar sozinha a amada irmã Ella naqueles duríssimos dias de conflito mundial.

Mesmo que sob forte censura, o campo de Toermersdorf foi o último pouso de onde as duas ainda puderam enviar cartas. E isso também está nas entrelinhas desta emocionante despedida de Vally Ollendorf para seu Ulrich:

Toermersdorf junto a Rothenburg, 24 de Agosto de l942

Meu amado, meu querido filho.

Dentro de dois dias sairemos daqui, e o futuro parece tão escuro que não está longe o pensamento de que este novo local será o último em nossa peregrinação e, quando você meu filho, tiver esta carta em mãos, não estaremos mais sendo jogados de um lugar para outro, pois todo o sofrimento tem um fim, também a incerteza, e a paz estará conosco e em torno de nós. Deseje me esta paz. meu querido filho, e não fique triste demais, acredite assim é melhor.

Eu já estava mesmo no fim da minha vida, e a mãe que você conheceu, meu querido filho, essa não existe mais. As tristezas, dificuldades e incertezas foram demais para mim e jamais consegui superar a morte de Wolfgang, que em 27 de Agosto completará um ano. A dor aumenta cada vez mais e as cartas que recebo de seus camaradas apenas me mostram o que ele se tornou e o que ainda poderia vir a ser. Suas cartas para mim e seu pai mostravam uma comovente gratidão por sua infância e juventude.

Também você, meu querido filho, pode ter a consciência por toda tua vida que você sempre foi uma fonte de pura alegria para teus pais e que mesmo nos tempos às vezes difíceis da adolescência jamais perdeu o caráter íntegro ou nos deu motivos de desgosto ou tristeza. Que tua vida vá de sucesso em sucesso, meu querido filho, e que você permaneça como era em criança, bondoso, modesto e grato por tudo o que é bom e belo.

Que encontre tanta felicidade em teu filho como nós encontramos em você. Que as bênçãos que suplico para você se tornem realidade e que possa ter uma vida alegre e feliz com Anne, tua fiel companheira para a vida, e com a qual você me trouxe uma filha querida. Não poder testemunhar vossa vida na América foi muito mais triste para mim do que vocês podem imaginar.

Todas tuas cartas repletas de carinho filial, despertavam em mim o eco da saudade e da alegria de um reencontro, e faziam com que eu tentasse todo o possível para me juntar a vocês. Se eu não escrevia com tanta frequência sobre minha angústia, era por amor, porque imaginava que fosse melhor para vocês. Mais uma vez digo, e sei que me entendem, eu estava e estou feliz por vocês, se bem que cheia de saudades. O destino não permitiu que eu fosse aí, eu era uma necessidade para tia Ella, e penso que isso vos consolará - queria tanto que assim seja.

Agora meu querido filho, quero me despedir. Quero te agradecer mil vezes por todo o amor, toda a gratidão, toda a alegria, e o raio de luz que trouxe na vida do teu pai e na minha desde o dia em que você nasceu. Que a lembrança da casa paterna e da tua infância te iluminem como uma estrela brilhante e protetora meu querido, amado filho.

Mãezinha [Vally Ollendorf para o filho Ulrich]

No livro O Cavaleiro da Saúde há um pequeno trecho de outra carta, escrita por Ella para a filha Ilza - mãe de Juljan -, dez meses antes de serem mandadas para o campo de Thieresenstadt. Ella tinha então 71 anos de idade. Também comovente.

Toermersdorf, 27-29 de outubro de 1941:

Minha querida Ilse,

Queria tanto poder descrever direito como estamos passando. Em primeiro lugar quero dizer: não se preocupem demais realmente é suportável e, se tivessem entrado aqui hoje cedo quando o correio chegou com as cartas de vocês e alguns presentinhos, também ficariam mais tranquilos.

Ilse, Fritz, nem posso lhes dizer quanta paz e força interior me trazem suas vidas, vocês juntos e conscientes da felicidade dessa união. Mesmo se minha preocupação por Werner é grande e a lembrança de Hertha nunca me abandona, minha gratidão pelo destino de vocês é tão grande que suporto muitas coisas com mais facilidade.

É um golpe duro para mim que tenha que me separar de tia Vally que, por esforços que Ulrich conseguiu um visto para Cuba. Naturalmente não posso esperar que ela deixe de ir, no entanto no momento ainda estamos juntas e felizes e satisfeitas com isto. Também temos tanto que fazer que os dias passam parecendo horas, não nos dando tempo de pensar, e isto é bom.

É a terceira vez que estou escrevendo hoje, e escrevi tudo que podia ser escrito. Os dias aqui são todos iguais mas cada um traz sempre algo de diferente. Você certamente entendeu o significado de "depósito de lixo", e Albert Schweitzer diz tão bem em um de seus livros: "Servir aos outros é algo que ninguém pode nos roubar". É realmente um sentimento gratificante quando podemos ajudar de verdade uma pessoa merecedora com um pedaço de pão ou bolo, ou estamos na situação de aliviar um pouco a tristeza e preocupação com um conselho ou uma palavra de carinho. Correm muitos boatos falsos, por outro lado muita coisa, diria tudo, depende do modo de encarar a vida.

A campainha está tocando, temos que buscar o café. Estamos muito ocupados descascando batatas ou em tarefas semelhantes, mas quem está pior são os que com este tempo horrível tem que trabalhar lá fora no campo.

Pus a carta de lado enquanto alegrava uma mãe fazendo jogos de escrever com sua filha de 14 anos e, para alegria de muitos, ajudei a dobrar roupas.

Tudo de bom para vocês e. sempre com vocês.

Sua mãe [Ella Dyhrenfurth para a filha Ilza]

Extraí estes textos de uma pequena publicação preparada nos anos 1990 por Jan Czapski, irmão do Cavaleiro da Saúde, que reuniu escritos de Ilza e Fryderyk Czapski com apoio da sobrinha Inês Czapski Dellape, filha de Juljan, na tradução para o português.

Detalhe importante, já conhecido por quem leu a biografia de Dr. Juljan: Ilse e Fritz - mencionados na segunda carta, são os nomes em alemão de Ilza e Fryderyk Czapski, pais do Cavaleiro da Saúde. Assim foram citados por terem nascido quando a Polônia ainda pertencia ao Império austro-húngaro. No livro demos preferência às novas grafias, que utilizaram inclusive no Brasil. (Silvia Czapski)